A PPP bilionária dos resíduos sólidos não atende os
interesses da população do Distrito Federal
A pretexto de
solucionar os problemas da limpeza pública, o GDF está preparando uma Parceria
Público-Privada para gerir os “sistemas de coleta, tratamento e destinação
final dos resíduos sólidos” do Distrito Federal por um prazo de 30 anos,
prorrogável por mais cinco, ao custo de R$ 11,7 bilhões.
A Resolução n° 51 do Conselho Gestor de PPP (CGP), vinculado
à Secretaria de Estado de Governo, autorizou a Companhia Paulista de
Desenvolvimento (CPD) a desenvolver estudos de viabilidade e modelagens técnica
e financeira para essa proposta, os quais foram analisados e aprovados com
pequenas ressalvas por uma comissão de servidores destacados para este fim,
oriundos das Secretarias de Governo, Casa Civil e Secretaria de Meio Ambiente e
Recursos Hídricos.
Sem divulgar esses estudos previamente, como seria de
esperar em um processo democrático e transparente, a
Secretaria de Governo convocou uma audiência pública para discutir a proposta
para o dia 10 de outubro passado. Mobilizados por informações de que o projeto significaria
a extinção do Serviço de Limpeza Urbana (SLU) e adotaria o tratamento por
incineração, dezenas de servidores daquela autarquia e centenas de catadores
cooperativados compareceram ao local da audiência, a Sala Alberto Nepomuceno do
Teatro Nacional, que comporta apenas 80 pessoas. O excesso de lotação
inviabilizou essa primeira audiência e uma segunda foi convocada para a
segunda-feira, 12 de novembro próximo, às 14 horas, no auditório do Museu
Nacional da República (próximo à catedral de Brasília). Apenas na semana
anterior a essa audiência, a Secretaria de Governo disponibilizou os estudos de
viabilidade da proposta e alguns de seus anexos, não tendo indicado porém na
minuta do contrato os valores envolvidos.
A partir do dia 10 de outubro, os catadores, em protesto
contra a opção dos incineradores, que ameaça o seu trabalho, bloquearam o
funcionamento do lixão da Estrutural durante nove dias. O desbloqueio só
ocorreu depois que a Secretaria Geral da Presidência intermediou conversações
entre os representantes dos catadores e do GDF para a celebração de um acordo, com
base nas seguintes propostas: descartar a incineração de resíduos; pagamento
pelo GDF aos catadores pelos serviços de triagem e encaminhamento para
reciclagem; construção dos galpões de triagem dos resíduos provenientes da
coleta seletiva nos terrenos cedidos pela Secretaria do Patrimônio da União às
cooperativas dos catadores; e contratação das associações de catadores para
realizar sem licitação (conforme previsão da Lei 8.666) os serviços de coleta
seletiva relativos a um dos quatro lotes do sistema de coleta seletiva a serem contratados
pelo SLU.
Embora os estudos técnicos da PPP não tenham sido divulgados
antes da primeira audiência, as entidades responsáveis pelo presente parecer tiveram
acesso a eles oficiosamente. Esta crítica
preliminar, orientada pelo interesse público, pelo respeito ao meio ambiente e
em favor da inclusão social, é fruto do esforço de um conjunto numeroso de cidadãos
e profissionais especializados – líderes dos catadores cooperativados de
resíduos sólidos, jornalistas, engenheiros, advogados, economistas e
ambientalistas.
Após o fracasso da audiência pública do dia 10 de
outubro, o GDF recuou em dois pontos: trocou a Novacap como titular da
contratação da PPP e admitiu que não mais adotará o sistema de tratamento de
lixo “por via térmica”, isto é, por incineração. Mas essa opção continua
constando no item 1.5 da página 4 do projeto básico divulgado pela Secretaria
de Governo uma semana antes da segunda audiência.
A proposta da PPP dos Resíduos Sólidos, que também é objeto de
consulta pública com prazo fixada até o dia 8 de novembro e prorrogado para 10
de dezembro, está eivada de ilegalidades; agride critérios técnicos
elementares, ou apresenta soluções condenáveis; sua modelagem
econômico-financeira não apresenta orçamentos minimamente sérios ou críveis;
seu prazo de execução, de 30 anos mais cinco, é exagerado; e seu custo, da
ordem de R$ 12 bilhões, ultrapassa os limites da razoabilidade e da
responsabilidade da administração pública e, com certeza, será repassado para a
população por meio de aumento significativo na Taxa de Limpeza Pública (TLP).
Esta proposta embute ainda custos sociais monstruosos. Em vez de
controlar, aprofunda a privatização dos serviços e aponta para a extinção do
Serviço de Limpeza Urbana (SLU/DF) a curto prazo. A coleta seletiva, tal como
consta dos estudos finalmente divulgados, está focada apenas no Plano Piloto,
uma discriminação sem sentido que traria graves prejuízos ao trabalho dos
catadores de materiais recicláveis. No caso dos resíduos sólidos de serviços de
saúde, a proposta estatiza despesas que são de responsabilidade dos
estabelecimentos privados. E também atropela os esforços para implantar a
gestão dos resíduos sólidos urbanos por meio de parceria do Distrito Federal
com o Estado de Goiás e os municípios goianos do Entorno, cujos encaminhamentos
já se encontram em fase adiantada.
Em resumo, esta proposta de PPP não atende o interesse público
nem aos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, transparência e
eficiência que a administração pública deve obedecer, nos termos do artigo 37
da Constituição Federal.
Uma proposta cheia de ilegalidades
A proposta desobedece a vários preceitos legais:
- Não observa que o resíduo sólido reutilizável e reciclável é
um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor da
cidadania, de acordo com o art.6º, inciso VIII, da Lei 12.305/2010;
- Não observa o art. 9º, parágrafo 1º, da mesma lei, o qual
estabelece que somente poderão ser utilizadas tecnologias visando à recuperação
energética dos resíduos sólidos urbanos, que tenham comprovada a sua
viabilidade técnica e ambiental, com a implantação de programa de monitoramento
de emissão de gases tóxicos, ficando qualquer processo de recuperação
energética restrito à "fração dos rejeitos".
- Não prevê, de modo explícito, como exigido pela Lei
11.445/2007, a entidade reguladora e os mecanismos da regulação e fiscalização
da qualidade e dos custos dos serviços objeto da concessão.
- Na primeira minuta do contrato, divulgado antes da audiência
pública do dia 10 de outubro, atribuía à Novacap a responsabilidade da
contratação dos serviços a serem concedidos, sem que sem que a companhia tivesse
competência legal para isso. Essa competência é atribuída pela Lei Distrital
4.285/2008 (parágrafo 5° do art. 47) à Adasa. Após o fracasso da audiência
pública, a titularidade foi mudada para o Distrito Federal.
- Não observa o disposto no parágrafo 2° do art. 47 da mesma
Lei, que veda a concessão dos serviços de limpeza de vias e logradouros
públicos (varrição) e de coleta, remoção e transporte de resíduos sólidos
domiciliares.
- Usurpa atribuições do Serviço de Limpeza Urbana (SLU/DF),
previstas no art. 46 da Lei Distrital N° 4.285/2008, que reestrutura a Agência
Reguladora de Águas e Saneamento do Distrito Federal (Adasa), e no art. 3° da
Lei Distrital 4.518/2.010, que dispõe sobre a denominação, a finalidade, as
competências e a reestruturação administrativa do SLU/DF.
- Não se baseia no Plano Diretor de Resíduos Sólidos do DF,
aprovado pelo Decreto 29.399/2008, cujo processo de revisão para sua adequação
à Política Nacional de Resíduos Sólidos (2010) encontra-se em andamento; fere
assim as disposições do parágrafo primeiro do art. 47 da Lei Distrital
4.285/2008, que exigem o planejamento com participação social desses serviços
antes que tenham sua prestação delegada a terceiros.
- Prevê que o GDF assuma os custos da coleta, transporte,
tratamento e disposição final de resíduos sólidos de serviços de saúde (RSS)
gerados pelos estabelecimentos privados. Assim, atropela o princípio do
"poluidor pagador", previsto no art. 225 da Constituição Federal, bem
como no art. 3° da Resolução n° 358/2005, do Conama. A única obrigação do GDF
deve ser a de pagar os custos do tratamento dos RSS dos estabelecimentos
públicos de saúde.
Monopólio: todos os ovos na mesma cesta por 30 anos
A proposta prevê que o parceiro privado assumirá todos os
serviços relacionados à limpeza urbana e ao manejo de resíduos sólidos, inclusive
os que exigem pouquíssimos investimentos, como é o caso da varrição manual e da
própria coleta, convencional ou seletiva. Não faz sentido outorgar via PPP esse
tipo de serviço por 30 anos, renovável por mais cinco, a um parceiro privado
que terá garantido um monopólio econômico não natural.
Esta constatação é tão evidente que, nos estudos de viabilidade,
examina-se um cenário alternativo que não inclui a varrição manual (cenário,
aliás, descartado na minuta de edital sem maiores justificativas). É pela mesma
razão que a Lei Distrital 4.285/2008 veda a concessão dos serviços de limpeza
de vias e logradouros públicos (varrição) e de coleta, remoção e transporte de
resíduos sólidos domiciliares, conforme antes mencionado.
A proposta atropela o Protocolo de Intenções firmado entre o DF,
Goiás e 20 Municípios goianos, que já foi ratificado legalmente por quase todos
esses entes, com a finalidade de instituir o Consórcio Público de Manejo de
Resíduos Sólidos e de Águas Pluviais da Região Integrada do Distrito Federal e
Goiás. Dessa forma, o DF abre mão, por 35 anos, de buscar soluções integradas
mais econômicas em parceria com os municípios do Entorno.
Soluções técnicas caras e questionáveis
Os estudos de viabilidade desta PPP não trazem uma palavra
sequer sobre metas de reciclagem dos resíduos sólidos domiciliares. Esta PPP
não é um instrumento destinado a atender no DF as metas de reciclagem do Plano
Nacional de Resíduos Sólidos. A proposta, quando aborda o tratamento e a
disposição final dos resíduos domiciliares, prevê a adoção da questionável
solução da incineração, a ser implantada na área do Aterro Sanitário Norte.
Questionável pelos impactos negativos no ambiente e na saúde
pública, e também porque é a alternativa mais cara para tratamento de resíduos
sólidos domiciliares.
É flagrantemente ilegal licitar um incinerador de lixo domiciliar
sem projeto básico e sem orçamento
Nos estudos técnicos da PPP, está prevista em caráter de
obrigação, por parte da concessionária, a apresentação de uma solução de
recuperação energética a partir destes resíduos até o 24º mês da concessão. Este
item, seus custos e suas receitas não foram contabilizados na modelagem
financeira. Tampouco foi contabilizada a drástica redução no volume das
operações de aterramento, ou seja, não se contabilizam as receitas oriundas da
venda de energia, não se contabiliza o gasto evitado nas operações de
aterramento, não se contabiliza o impacto social e ambiental negativos, ficando
aberta a possibilidade de aditivo para aliviar o parceiro privado de realizar
seus investimentos. A opção mais ou menos disfarçada pela incineração, ao não
priorizar a coleta seletiva em todo o território do Distrito Federal e a
reciclagem, desobedeceria à hierarquia prevista na Lei n° 12.305/2010.
O edital não informa o órgão responsável pela regulação, controle
e fiscalização de serviços no valor de R$ 11,7 bilhões
Nos estudos técnicos, a coleta seletiva só foi dimensionada para
o Plano Piloto, não contemplando de modo abrangente o Distrito Federal. Essa
discriminação revela a diretriz adotada: em vez de reciclar, queimar matérias
primas recicláveis. Não atendendo às diretrizes do Plano Diretor de Resíduos
Sólidos do Distrito Federal, que prevê a implantação de um sistema de coleta
seletiva em 100% (art. 8° do Decreto n° 29.399/2008), a proposta golpeia de
maneira brutal o trabalho e a renda dos mais de três mil catadores que hoje
asseguram a reciclagem no DF.
Apesar de impor um aumento significativo nos custos, como
demonstrado a seguir, a proposta não traz qualquer garantia de melhoria nos
serviços de limpeza urbana. Aliás, a minuta do edital não explicita qual órgão
será responsável pela regulação, controle e fiscalização dos serviços que se
pretende conceder.
O edital não informa o órgão responsável pela regulação, controle
e fiscalização de serviços no valor de R$ 11,7 bilhões
O edital chega a tolerar que a concessionária, detentora de um
contrato de R$11,7 bilhões, inicie as suas atividades utilizando na coleta
caminhões com até cinco anos de uso.
Bilhões jogados no lixo
Os investimentos orçados nessa proposta são de R$ 770 milhões,
valor que, por incrível que pareça, é pequeno se considerado que se trata de um
contrato de prestação de serviços, por um único concessionário, no valor de R$
11,7 bilhões. Ou seja, mais de R$ 390 milhões ao ano, durante 30 anos, que
poderão ser prorrogados por mais cinco, situação em que este contrato poderá
chegar a R$ 13,6 bilhões, a preços de hoje. Sem contar os custos da
incineração.
Este contrato dará causa a um aumento das despesas com os
serviços de limpeza urbana da ordem de R$ 200 milhões anuais ou 110%. O
acréscimo das despesas nos primeiros quatro anos superará o valor dos
investimentos privados previstos para os 30 anos.
Deve se registrar que o GDF alocou recursos no seu orçamento
para a implantação do Aterro Sanitário Oeste e para a recuperação ambiental do
Lixão da Estrutural, tendo já obtido a aprovação de financiamento internacional
no âmbito do Programa Brasília Sustentável II junto ao Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID).
Em resumo, a proposta em questão, em vez de fortalecer a
capacidade técnica e administrativa do poder público no Distrito Federal,
entrega a um monopólio privado a prestação desses serviços essenciais à saúde e
ao ambiente do DF por pelo menos 30 anos. Sairão prejudicados os cidadãos
brasilienses, que pagarão bem mais sem qualquer garantia de receber serviços
melhores.
A influência política de quem presta esses serviços, que já se
revelou extremamente danosa, estará sendo concentrada e ampliada na capital da
República. O SLU será extinto. A reciclagem dos resíduos poderá ser substituída
pela incineração, se o GDF não assumir formalmente um compromisso contrário. Se
a incineração for adotada, os catadores, mais uma vez, vítimas de um negócio
bilionário, serão condenados à miséria com a queima do material que garante seu
sustento e a eliminação dos seus postos de trabalho. Mas este é assunto que
interessa a toda a população do Distrito Federal.
Apoiam e divulgam este
documento:
- Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e
Ambiental – Seção Distrito Federal – ABES DF
- Associação Civil Alternativa Terrazul
- Associação Nacional dos Serviços Municipais de
Saneamento – ASSEMAE
- Central de Cooperativas de Materiais Recicláveis do
Distrito Federal – CENTCOOP
- Central de Movimentos Populares – CMP
- Confederação Nacional das Associações de Moradores –
CONAM
- Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros –
Fisenge
- Federação Nacional dos Urbanitários – FNU/CUT
- Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o
Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável – FBOMS
- Movimento Nacional dos Catadores de Materiais
Recicláveis – MNCR
- Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em
Políticas Sociais – Pólis
- Sindicato dos Servidores e Empregados do Distrito
Federal SINDSER